Interessa nesta disciplina seguir, em parte, a pista aberta por Mauro Almeida no artigo Etnografia em tempos de guerra: contextos temporais e nacionais do objeto da antropologia a respeito da importância da guerra na produção de etnografias, mesmo quando esta se encontra pacificada, como é o caso do livro Os Nuer de Evans-Pritchard, no qual o autor menciona apenas brevemente na introdução que o cenário onde realizou seu trabalho de campo, então colônia britânica no Sudão, estava marcado por conflitos com o governo colonial. Além disso, as questões que alimentam esta proposta de curso seguem as provocativas reflexões de Jacklyn Cock em The Place of Gender in a Demilitarisation Agenda, no sentido de questionar e refletir sobre o lugar do militarismo na produção e na solução não somente de conflitos, mas igualmente da violência e da desigualdade social e de gênero. Cock realiza uma análise corajosa para o contexto sul-africano, uma vez que ao abordar gênero e militarização, traz à cena, em relativa posição de igualdade, a virilidade que informa a violência e o militarismo de Africânderes e Zulus. Através destas pistas espera-se colocar em perspectiva tanto as etnografias confinadas a um espaço-tempo unificado e isolado, marcado pelo apaziguamento dos conflitos e das violências coloniais, quanto àquelas que têm como foco uma região e/ou a nação, que levam a uma ampliação da unidade temporal. Assim, interessa tanto entender e situar as ações e a violência do racismo da ultradireita sul-africana, por exemplo, quanto compreender o sentido de “injustiça” operado por muitos dos nacionalistas e as relações entre Estados nacionais e sociedades locais e o surgimento das chamadas “guerras étnicas”.
Essa disciplina tem por propósito analisar estudos realizados no âmbito da chamada “Antropologia da guerra”. Ao longo do curso observar-se-á o lugar dos conflitos armados, da guerra e das violências física e simbólica na produção do saber antropológico, tendo como foco especifico, mas não exclusivo, os trabalhos produzidos em diferentes países do continente africano. Espera-se, neste percurso, discutir a pertinência de se evocar uma antropologia da guerra ou de estados em guerra e neste sentido das questões metodológicas e éticas que atravessam esse campo. Quais são os rumos do “juízo relativista”, que anima o pensamento antropológico, nestes contextos? Como dar inteligibilidade a processos sociais e as construções de coletividades, identidades e sujeitos que se posicionam de modo político e subjetivo a partir de experiências de dor e sofrimento? Haverá assim espaço para que se possa, ao longo das aulas, mobilizar algumas das experiências vividas no trabalho de campo que se transformam em marcas indeléveis – sejam as presentes na literatura antropológica sejam as vividas pelos próprios estudantes. Em resumo, serão focados os momentos ou situações perturbadoras em termos etnográficos, existenciais e morais que permeiam muitos dos nossos trabalhos etnográficos.
- Antropologia da guerra e do colonialismo; - Direita, esquerda e militarismo; - Humanistarismo, guerra e militarização; - Marcadores sociais da diferença e antropologia das populações africanas e afro-brasileiras; - Guerras étnicas; - Gênero, raça, sexualidade identidade nacional e militarização; - Gestão da dor e do sofrimento em situações de conflitos sociais; - Modos de reconstrução e de regulação da vida social; - Ética e dilemas morais.
Almeida, Mauro. A etnografia em tempos de guerra: contextos temporais e nacionais do objeto da antropologia. In: Peixoto, Fernanda Áreas; Pontes, Heloísa e Schwacz, Lilia (orgs.). Antropologias, Histórias, Experiências. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004, pp. 61 – 81. Brettell Caroline (1993), When They Read What We Write. The Politics of Ethnography, Westport, CT: Bergin & Garvey. Butler, Judith. Frames of War: When Is Life Grievable? Verso: London, 2009. Butler, Judith.Precarious Life: The Powers of Mourning and Violence.Verso: London, 2004. Cabaço, José Luís. Moçambique: identidade, colonialismo e libertação. São Paulo: Editora Unesp, 2009. Cock, Jacklyn. The Place of Gender in a Demilitarisation Agenda. In: Agenda: Empowering women for gender equity;Vol.9, Issue 16 (Special Issue: Violence in focus) pp.49-55, 1993. Coelho, Maria Cláudia. Três Mulheres no Nazismo: reflexões sobre as fontes do comportamento moral. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, p. 13-48, 2009. Comaroff, J & Comaroff, J. Etnografia e imaginação histórica. Tradução de Iracema Dulley e Olivia Janequine. IN: Proa – Revista de Antropologia e Arte [on-line]. Ano 02, vol.01, n. 02, nov. 2010. Disponível em: http://www.ifch.unicamp.br/proa/TraducoesII/comaroff.html Crapanzano, Vincent. The Harkis: the wound that never heals. The University of Chicago Press:Chicago and London, 2011. Das, Veena. Life and Words: violence and the descent into the ordinary. University of California Press: Berkeley, Los Angeles, London, 2007. Das, Veena. War and the Mythological Imagination. http://www.ledijournals.com/ojs/index.php/antropologia/article/view/196 Debert, Guita Grin. Ética e as novas perspectivas da pesquisa antropológica. In: Ceres Víctora, Ruben George Oliven, Maria Eunice Maciel e Ari Pedro Oro (organizadores). Antropologia e ética: o debate atual no Brasil.Niterói: EdUFF, 2004. Fassin Didier (2013), Why Ethnography Matters. On Anthropology and Its Publics, Cultural Anthropology, 28 (4): 621-646. Fassin, Didier (2013), A Case for Critical Ethnography. Rethinking the Early Years of the AIDS Epidemic in South Africa, Social Science & Medicine, 99: 119-126 Fassin, Didier.Humanitarian Exception as the Rule. The Political Theology of the 1999 ‘Tragedia’ in Venezuela (with Paula Vasquez), American Ethnologist, 32 (3):389-405, 2005. Fry, Peter. (2003), “Culturas da diferença: sequelas das políticas coloniais portuguesas e britanicas na África Austral”. Afro-Ásia, 29-30, 271-316. Geffray, Christian. A Causa das Armas em Moçambique: Antropologia da Guerra Contemporânea. Porto: Afrontamento, 1991. Gusterson, Hugh. “Anthropology and Militarism”. Annu. Rev. Anthropol. 2007. 36:155–75 Hoffman, Danny. The War Machines: Young Men and Violence in Sierra Leone and Liberia. Durham: Duke University Press, 2011. (Introdução) Koenigsberg, Richard. Bin Laden’s Ideology: “Our Youth love death as you love life” In: Library of Social Science, 20 de maio de 2015 e o documento: Bin-Laden-1996-declaration-of-war-against-the-americans Lan, David. Guns and Rain: Guerrillas & Spirit Mediums in Zimbabwe, Londres, Berkeley e Los Angeles, James Currey e University of California Press, 1985. Leirner, Piero. "Perspectivas antropológicas da guerra". BIB, 60:43-63, 2005. Lutz, Catherine. (2002), “Making war at home in the United States: militarization and the current crisis”. American Anthropologist, 104 (3): 723-35. Lutz, Catherine. Ethnography at the war century end. In: Journal of Contemporary Ethnography, vol 28, No 6, 1999. McClintock, Anne. Couro Imperial: raça, gênero e sexualidade no embate colonial. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2010. Moutinho, Laura. Sobre Danos, Dores e Reparações: The Moral Regeneration Movement – Controvérsias Morais e tensões Religiosas na Ordem Moral Sul-Africana. In: Wilson Trajano Filho (Org.). Travessias Antropológicas: Estudos em Contextos Africanos. Brasília: ABA, 2012, pp:275/296. Otterbein, Keith F., 1999 (December), "A History of Research on Warfare in Anthropology," American Anthropologist 101(4):794¬-805. Primo Levi: É isto um homem? Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1988. Riedi, Eliza. “The women pro-Boers: Gender, peace and the critique of empire in the South African war”. Historical Research, vol. 86, no. 231 (February 2013) Scheper-Hughes Nancy (2000), Ire in Ireland, Ethnography, 1 (1): 117-140. Schwarcz,Lilia. Moderna República Velha: um outro ano de 1922. Rev. Inst. Estud. Bras.,n.55,p.59-88,2012 Silva, Jorge da. “Militarismo”. In: Dicionário crítico das ciências sociais dos países de fala oficial portuguesa/org.,Livio Sansone e Cláudio Alves Furtado ; prefácio, Lilia Moritiz Schwarcz ; apresentação [feita pelos organizadores], com a colaboração de Teresa Cruz e Silva.- Salvador: EDUFBA, 2014. pp 349-362 Trajano Filho, Wilson. “A África e o Movimento: reflexões sobre os usos e abusos dos fluxos”. In: Dias, Juliana. B.; Lobo, Andréa. (Org.). África em Movimento. Brasilia: , 2012, v. 1, p. 23-45. Veena Das. 1998. “Official narratives, rumor, and the social production of hate”. Social Identities, 4 (1):109-130 Woodward, Susan. Humanitarian War: A New Consensus? Disasters 25(4): 331 – 344, 2001.